David Karvala
Acabo de sair de um julgamento de sete dias em que o partido de extrema-direita VOX e a Procuradoria de Crimes de Ódio uniram forças para acusar oito vizinhos do diversificado bairro de Raval, em Barcelona, na sequência de um protesto no bairro em setembro de 2020.
No último dia, todas as acusações foram retiradas contra mim. As outras sete pessoas apenas viram as suas penas reduzidas, embora seja de notar que a Procuradoria dos Crimes de Ódio retirou a agravante de crime de ódio, o que representa uma vitória parcial da nossa parte.
Assim, foi-me retirado o peso das acusações infundadas que afectaram a minha vida durante mais de três anos. Mas os outros sete arguidos, que enfrentam acusações igualmente infundadas, têm de esperar até setembro para ouvir o veredito.
Tudo o que ouvimos durante os sete dias de julgamento confirma que não existe um caso real contra nenhuma das oito pessoas que acusámos. As outras sete devem ser absolvidas, e o mais rapidamente possível.
Para saber mais sobre o caso e o julgamento, pode ler os artigos de Oriol Solé no El Diario, onde ele relatou os testemunhos dos dirigentes da VOX, os ficheiros políticos da polícia e os testemunhos das pessoas acusadas.
Vou abordar aqui algumas questões gerais suscitadas por esta experiência difícil.
Odiar o racismo é um crime?
Todo o caso se baseia num abuso do conceito de crime de ódio.
Fui representada no processo pela advogada Laia Serra, especialista em crimes de ódio. A advogada explica o problema num artigo cujo título o resume: “Crimes de ódio, uma arma política e jurídica nas mãos da extrema-direita”.
Quando o conceito de crime de ódio foi introduzido no Código Penal, alguns movimentos anti-racistas apresentaram-no como uma solução definitiva para a ameaça da extrema-direita. Era suposto ter sempre como objetivo defender grupos oprimidos, como pessoas racializadas, LGTBI+, mulheres, etc.
Mas em 2019, a Procuradoria Geral do Estado, na Circular 7/2019, declarou que: “uma agressão contra uma pessoa de ideologia nazista, ou incitação ao ódio contra tal grupo, pode ser incluída neste tipo de crime [de ódio]”.
Estavam a dizer que um pequeno grupo neonazi que gritasse slogans racistas ou LGTBIfóbicos merecia a mesma proteção especial que uma mulher trans agredida no metro, ou uma pessoa idosa muçulmana agredida quando regressava a casa depois de rezar na mesquita. Isto já é uma aberração.
Mas aqui, vai-se mais longe. No caso do Raval, estamos a falar de políticos, de figuras políticas, de pessoas que recebem salários chorudos para (supostamente) nos representarem. Essas figuras não podem tomar decisões que prejudicam as nossas vidas, nem proferir declarações insultuosas nos palanques de instituições que nós pagamos, e depois acusar de crime de ódio aqueles que os criticam ou até se manifestam contra eles. Em tribunal, Laia Serra citou precedentes judiciais que deixam isso bem claro.
Ao retirar a agravante do ódio neste caso, o Ministério Público deveria reconhecê-lo, mas com mais de três anos de atraso e depois de ter causado muito sofrimento aos arguidos e às nossas famílias e amigos.Falta agora uma retificação geral. É um escândalo que a Procuradoria dos Crimes de Ódio aplique este conceito contra activistas que lutam contra o ódio e defendem os direitos humanos.
Solidariedade
A Unitat Contra el Feixisme i el Racisme, UCFR, a ampla plataforma contra o extremismo de direita que existe na Catalunha desde 2010, tem estado ativa desde o início na divulgação do caso e na recolha de apoio para as oito pessoas acusadas. E não só da Catalunha; os movimentos irmãos da UCFR noutros países juntaram-se em solidariedade com o caso.
É de salientar que os activistas dos direitos humanos na Tunísia e na África do Sul manifestam a sua preocupação com a falta de garantias democráticas neste país, o que representa uma inversão da relação típica entre o Norte e o Sul do mundo.
Por seu lado, o grupo de apoio RavalVsVOX realizou muitas actividades no bairro, angariando fundos para o grupo anti-repressão Alerta Solidaria, que assumiu a defesa de sete dos acusados.Houve mobilizações de solidariedade no primeiro e no último dia do julgamento. Por um lado, o tecido social do Raval, organizado principalmente pelo grupo de apoio RavalVsVOX.Por outro lado, um amplo espetro de movimentos e organizações que compõem a UCFR, como associações de moradores, sindicatos (CCOO, UGT, entre outros), partidos políticos, movimentos de migrantes e de pessoas racializadas, mulheres…
Uma luta unida
Este caso deve deixar claro que não podemos confiar no sistema judicial para nos defender contra o racismo e a extrema-direita. E não podemos esquecer que a extrema-direita está a crescer em toda a Europa, em todo o mundo.
Face a esta ameaça, é necessária uma resposta alargada e unida a partir de baixo. Por conseguinte, nesta luta, temos de trabalhar em conjunto entre forças muito diversas que discordam em muitas outras questões. Não podemos permitir a repetição do erro dos anos 30, quando sectores da esquerda se recusaram a promover uma luta unida contra Hitler porque outros grupos de esquerda eram “iguais aos nazis”.
Também não nos podemos dar ao luxo de cometer o erro de confiar em pactos eleitorais, em que todos têm de cumprir um programa político para gerir o sistema e em que quaisquer opiniões mais radicais são reprimidas.
A luta unida é precisamente isso: uma ação unida baseada no respeito pela diversidade, sem que ninguém tente impor a sua visão política aos outros e sem que ninguém tenha de abandonar os seus próprios princípios.Na Catalunha, temos vindo a trabalhar nesta direção desde 2010; ainda temos muito trabalho a fazer, mas já conseguimos muito. Não existe nada semelhante em grande parte do Estado espanhol.
Nota de DK: A UCFR teve de assumir a minha defesa e fui representado por Laia Serra. No entanto, a UCFR não dispunha de fundos suficientes para um processo tão longo. Foi criado um financiamento coletivo (crowdfunding), mas ainda não atingimos o objetivo. Todas as contribuições são bem-vindas: https://gofund.me/d4bfbcb1
Este artigo foi publicado pela primeira vez no ElDiario.es, 25/07/2024