John Molyneux
Com a queda dos regimes do leste europeu a identificação do socialismo com a opressão e os cartões de racionamento tornou-se um senso comum. Este texto oferece uma visão do socialismo como uma sociedade cuja meta última é a liberdade real e a abundância para todos os indivíduos do planeta, essencialmente diferente, portanto, dos regimes comunistas que pereceram no leste europeu ou que ainda sobrevivem como é o caso da China, Cuba e Coréia do norte.
O texto recolhe uma coletânea de artigos escritos, nos anos 80, no jornal britânico Socialist Worker. Isso se reflete, às vezes, em alguns exemplos usados, bem como na referência ao stalinismo existente nos países do leste. Este fato não diminui a validade e validade de seu argumento no presente.
O texto foi traduzido para o português no Brasil nos anos 90.
Introdução à tradução brasileira
Introdução
A conquista do poder político
Repressão e liberdade sob o poder dos trabalhadores
A conquista do poder econômico
Ampliando a revolução: a dimensão internacional
Produzindo para as necessidades: rumo à abundância
A transformação do trabalho
A libertação das mulheres
O fim do racismo.
Aprendendo para o futuro
A necessidade à liberdade
Sugestões de leitura
Introdução à tradução brasileira
Provavelmente alguns dirão que é fácil dizer essas coisas depois da queda dos regimes do leste. Na verdade, o caderno que ora apresentamos data de 1987, quando, em pleno início da Glasnost e da Perestroika de Gorbachev, alguém que preconizasse a queda próxima do império russo e dos países do bloco seria chamado de lunático. Mas à parte isso, o que já é suficiente para dar credibilidade ao texto, o autor pertence a uma corrente socialista internacional que desde o final da década de 40, portanto há mais de 50 anos, considerava que a Rússia stalinista, bem como os então recém-surgidos países do bloco do leste europeu (Iugoslávia, Romênia, Alemanha Oriental, Bulgária, Polonia e Tchecoslováquia) não eram nem países socialistas nem Estados operários degenerados, mas sim regimes onde vigoravam a exploração e a opressão da maioria por uma minoria. Eram na realidade capitalismos de Estados burocráticos, como os denominou Tony Cliff, nos quais a burocracia do Partido único e do Estado constituíam a classe dominante exploradora e opressora.
Tal análise exigiu a reafirmação constante dos autênticos ideais do socialismo clássico de Marx, Engels, Rosa, Lenin, Trotsky e Gramsci. Este caderno oferece essa perspectiva de modo claro, simples e didático, sem ser superficial em nenhum momento. É uma leitura inspiradora e esclarecedora para todos aqueles que acreditam que a verdadeira emancipação da humanidade só será possível com a derrubada do capitalismo em escala global e a construção do socialismo internacional.
Nesses tempos em que ideólogos e políticos da burguesia dão as mãos a stalinistas e social-democratas para louvarem juntos as maravilhas do mercado e do capitalismo cada vez mais globalizado, este caderno é um verdadeiro instrumento de luta.
Para aqueles que desejarem um estudo mais aprofundado, apresentamos no final uma sugestão de leituras.
Introdução
«Como serão as coisas no socialismo? Como nós resolveremos tais e tais problemas?» Perguntas assim são frequentemente colocadas para os socialistas. Temos que reconhecer que as respostas são geralmente vagas. Certamente os escritos de Marx nessa área não podem ser comparados à sua análise monumental do capitalismo e à sua vasta obra abrangendo a história e a política contemporâneas. Embora o que Marx tenha escrito sobre o tema tivesse o brilho de sempre, tendo se tornado depois a base para todo o pensamento sobre o socialismo, o fato é que ele tratou dos principais problemas apenas de modo geral.
Existiram boas razões para isso.
Antes de Marx a corrente socialista dominante era a dos «utópicos», como Saint-Simon e Fourier na França e o inglês Robert Owen. Os socialistas utópicos se especializaram em elaborar grandiosos esquemas para a futura organização da sociedade, mas não possuíam nenhuma estratégia para concretizá-los, a não ser apelar para a boa vontade da classe dominante.
Marx estava determinado a diferenciar o seu socialismo científico desses sonhos de classe média. Ele enfatizava que o socialismo só poderia surgir a partir das contradições reais do capitalismo – a anarquia na produção capitalista e o antagonismo entre a classe trabalhadora e a burguesia. Isso estabeleceu limites estritos às previsões sobre a organização da sociedade socialista, limites que excluem quaisquer tentativas de um anteprojeto detalhado. No essencial esses limites são válidos até hoje.
Uma vez que o socialismo emerge do capitalismo como um resultado da luta vitoriosa da classe trabalhadora, as medidas específicas introduzidas pelo governo socialista revolucionário dependerão, obviamente, das condições econômicas, sociais e políticas particulares do momento.
Nós não podemos saber como serão essas condições tanto quanto não podemos adivinhar quando será a data da revolução. Além disso, uma vez que o ponto central da revolução socialista é colocar a sociedade sob o controle consciente da classe trabalhadora, torna-se fútil especular sobre muitas questões. Elas devem simplesmente ser deixadas para que os trabalhadores do futuro decidam o que fazer. Por exemplo, seria um absurdo traçar planos para o estilo das casas em uma sociedade socialista. Isso dependerá do tipo de casas que as pessoas do futuro escolherão para morar.
Entretanto, permanecem perguntas a serem respondidas. Se as pessoas abraçam a luta pelo socialismo, elas querem saber pelo que elas estão lutando. Isso é especialmente verdadeiro hoje, quando ainda paira a sombra sinistra dos regimes stalinistas que cairam por terra na Rússia e no Leste europeu e que ainda sobrevivem em países como Cuba, China e Coréia do Norte.
Há uma necessidade premente na propaganda socialista por uma denúncia viva e implacável do capitalismo. Há a necessidade de uma análise profunda da estratégia e da tática do movimento dos trabalhadores. Mas há também a necessidade de inspiração, de uma visão global que faça a luta valer mais a pena.
Além do mais, em certos aspectos nós estamos melhor posicionados do que Marx para responder a algumas dessas questões. Um século de desenvolvimento capitalista preparou involuntariamente o terreno para o socialismo e tornou mais fácil conceber como certas metas colocadas por Marx, como a conquista da abundância material ou a superação da divisão do trabalho, podem ser realizadas na prática.
E, afinal, temos a vantagem de um século de lutas dos trabalhadores. Nós não tivemos, obviamente, a experiência de uma sociedade socialista plena no sentido marxista. Mas tivemos a experiência de uns poucos anos de revolução socialista na Rússia e de numerosas revoluções que apesar de não terem sido vitoriosas, como na Espanha em 1936 ou na Hungria em 1956, continham as sementes do socialismo.
É por essas razões que este caderno tentará colocar com algum detalhe uma visão marxista da futura sociedade socialista. Eu sublinho a palavra tentativa porque, à parte os erros pessoais e as idiossincrasias que possam interferir no texto , uma coisa é certa: a realidade do socialismo será diferente de qualquer antecipação possível. Mas isso não invalida a empreitada de tentar mostrar, concretamente, como é possível para a humanidade, através do socialismo, resolver os problemas fundamentais que a afligem e conquistar uma liberdade verdadeira.
Um outro ponto preliminar deve ser colocado. Socialismo – ou comunismo, para usar o termo original de Marx – não é um estado social pronto para ser introduzido no dia seguinte à revolução. Ao contrário, é um processo histórico.
Esse processo começa com a destruição do capitalismo pela revolução dos trabalhadores. E ele só é completado quando uma sociedade sem classes é plenamente conquistada em escala mundial – isto é, quando toda a raça humana dirigir e organizar sua vida sem antagonismos de classe ou luta de classes.
Entre a derrubada do capitalismo e a sociedade sem classes existe um período de transição. Chamada por Marx de «ditadura do proletariado», nós o chamaresmos simplesmente de «poder dos trabalhadores».
Na discussão sobre o futuro socialista é sempre essencial ter isso em mente. Pois o que pode ser feito e o que será feito no estágio inicial, quando a classe trabalhadora – embora no poder – ainda está envolvida na luta contra a burguesia despossuída, não é de modo algum o mesmo que as possibilidades que se abrirão quando a humanidade estiver, finalmente, unida plenamente.
A conquista do poder político
A tarefa primeira e mais imediata que se coloca diante de uma revolução vitoriosa é a consolidação de seu domínio e a sua defesa diante das tentativas de restauração capitalista.
Isto é crucial, uma questão de vida ou morte, pois a experiência de todas as revoluções desde a Comuna de Paris mostra que a burguesia está pronta para usar a violência mais brutal e impiedosa para manter o poder ou retomá-lo caso o tenha perdido.
Para quebrar a resistência da classe dominante despojada do poder, que contará com o apoio do resto da classe capitalista internacional, a classe trabalhadora terá que criar seu próprio Estado. Esse Estado, como qualquer outro, será uma organização centralizada exercendo a autoridade máxima na sociedade e tendo à sua disposição as forças armadas.
Mas aqui a semelhança entre o Estado dos trabalhadores e o Estado capitalista termina. As velhas forças armadas capitalistas, bem como a polícia, serão desmanteladas – em essência já estarão em colapso quando a revolução tiver sido vitoriosa. Em seu lugar serão criadas organizações de trabalhadores armados – as milícias de trabalhadores.
Os alicerces dessas milícias serão possivelmente assentados no curso da revolução e é provável que elas surgirão das fábricas e locais de trabalho. A não ser que a revolução tenha diante de si uma situação de guerra civil, o serviço nas milícias será rotativo, treinando e envolvendo o máximo de trabalhadores na defesa de seu próprio poder, e ao mesmo tempo garantindo que as milícias não se separem da classe trabalhadora enquanto todo.
As milícias também cuidarão da garantia cotidiana da lei e da ordem – uma tarefa que, por causa das suas raízes na comunidade, elas saberão cumprir com muito mais eficácia do que a polícia capitalista.
Todos os oficiais das milícias serão eleitos, sujeitos a reeleições regulares e à revogação de seus mandatos, e receberão salários não superiores aos salários médios pagos aos trabalhadores – princípios que serão extensivos aos dirigentes e oficiais do novo Estado.
Entretanto as instituições chave não serão as milícias, mas sim a rede dos conselhos de trabalhadores. Os conselhos serão coletivos de delegados, eleitos nos locais de trabalho, que por sua vez enviarão delegados para um organismo que será o poder mais elevado a nível nacional, o conselho nacional de trabalhadores. O governo, as milícias, e todas as demais instituições estatais estarão subordinados ao conselho nacional dos trabalhadores e a ele deverão prestar contas.
Quaisquer partidos políticos poderão atuar livremente no interior dos conselhos, desde que aceitem a estrutura básica da revolução e, portanto, a democracia dos trabalhadores.
A razão pela qual podemos prever esse papel não é porque tenha sido estabelecido com letras de fogo por Marx (na realidade ele nunca fez menção a conselhos de trabalhadores), mas sim porque todas as revoluções proletárias, e todas as tentativas de revoluções pelos trabalhadores criaram tais organismos ou seus embriões.
O primeiro conselho de trabalhadores ou Soviete, como foi chamado, surgiu em S. Petersburgo, na Rússia, durante a revolução de 1905. Exemplos posteriores são os sovietes russos de 1917, os conselhos operários alemães dos anos 1918-19, o Conselho Central dos Trabalhadores de Budapeste em 1956. Exemplos de embriões de conselhos de trabalhadores são os conselhos de fábrica na Itália em 1919-20 e os Cordones chilenos em 1972, entre outros.
Pela mesma razão seria inútil avançar previsões mais detalhadas sobre a organização dos conselhos de trabalhadores. Os conselhos não surgem após a revolução, de acordo com algum plano pré-estabelecido, mas sim no próprio curso da revolução para capacitar a classe trabalhadora a coordenar suas forças. Como órgãos de luta, suas estruturas, inicialmente, são improvisadas para atender as exigências daquele momento e, sendo assim, variam enormemente de acordo com as circunstâncias.
Nesse ponto surge uma questão vital. Quão democrático será o poder dos trabalhadores?
É verdade que o governo dos conselhos dos trabalhadores não será, em termos formais, uma democracia absoluta. Não haverá sufrágio universal completo porque a natureza do sistema excluirá do processo eleitoral a velha burguesia, os seus partidos e os seus principais associados. Mas o que falta em termos formais será mais do que compensado em termos de participação real da massa do povo.
A democracia do conselho dos trabalhadores será baseada no debate e na discussão coletiva e na capacidade dos eleitores de controlar os seus representantes. O mecanismo desse controle será muito simples. Se os delegados não representam a vontade de seus eleitores, eles são simplesmente destituídos por assembléias de massa, realizadas nos locais de trabalho e substituídos.
Naturalmente esse tipo de controle é impossível no sistema parlamentar capitalista. Em vez de termos um dia de democracia a cada quatro anos, na sociedade socialista haverá um envolvimento permanente e cotidiano da maioria do povo.
Algumas pessoas se perguntam se um sistema baseado nos locais de trabalho não excluiria seções importantes da classe trabalhadora como as donas de casa, aposentados, desempregados, etc., que não estão presentes nos locais de trabalho.
Mas uma das grandes virtudes dos conselhos de trabalhadores é a sua flexibilidade e a capacidade de adaptação às mudanças que ocorrem na estrutura da classe trabalhadora.
Na Revolução espanhola de 1936, por exemplo, um dos organismos chaves do poder dos trabalhadores foi os comitês de bairros criados em cada distrito operário das grandes cidades. Esses comitês, representando toda a população do distrito, organizaram e controlaram milícias de trabalhadores, distribuição de alimentos, educação, e inúmeras outras áreas da vida cotidiana.
Uma vez garantido que o núcleo da estrutura esteja enraizado nos locais de trabalho, não haverá razão para que outros grupos não possam formar coletivos e os seus delegados sejam incorporados aos conselhos.
A característica principal do Estado proletário será o fato de que ele se baseia na auto-atividade, na capacidade de organização e na criatividade da classe trabalhadora na criação da nova sociedade, de baixo para cima. Dessa forma será milhares de vezes mais democrático que a mais liberal das democracias burguesas, as quais, sem exceção, dependem da passividade dos trabalhadores.
Tudo isso soa maravilhoso aos nossos ouvidos, e com razão, pois será maravilhoso, como os breves períodos em que os trabalhadores tomaram o controle demonstraram. Leiam, por exemplo, os relatos de John Reed da Rússia de 1917 em seu Os dez dias que abalaram o mundo ou a Homenagem a Catalunha de George Orwell sobre Barcelona em 1936. Mas quanta repressão será necessária? Que liberdade haverá para aqueles que pensam de modo diferente?
Repressão e liberdade sob o poder dos trabalhadores
Graças à propaganda da classe dominante, na cabeça das pessoas a revolução está associada à guilhotina e aos pelotões de fuzilamento. Por causa do stalinismo o regime pós-revolucionário é imaginado como um regime repressivo e uniforme em que qualquer um que não siga a linha do partido acaba por receber uma «visita» às quatro horas da manhã.
Essas imagens estão vinculadas a uma situação histórica específica – a derrota da revolução russa. Como o capítulo anterior deixou claro, os marxistas concebem o poder dos trabalhadores como uma vibrante democracia dos trabalhadores que aumentaria enormemente o poder, os direitos e liberdades dos trabalhadores.
Entretanto, deve ser colocado de modo muito franco que será necessário algum nível de repressão, de uso de força direta, não só para derrubar o Estado capitalista mas também após a revolução para manter o poder dos trabalhadores. A luta de classes não chega ao fim com a vitória da revolução, especialmente quando estamos falando da vitória em apenas um país.
Além do mais o fato de o Estado operário ser recente fará com que seu domínio seja frágil por um certo período. A velha classe dominante e setores da classe média considerarão o novo Estado como uma aberração temporária e, na expectativa de sua queda, não aceitarão nem a sua legitimidade e nem a sua autoridade. Sem nenhuma dúvida essas forças tentarão bloquear e sabotar a construção da nova sociedade e, uma vez que tenham essa chance, destruí-la pela força.
Eles não podem ter essa chance. A resistência capitalista deve ser quebrada firme e impiedosamente, com o uso da força necessária.
Mas ir além dessa afirmação geral é especular quanta repressão será, exatamente, necessária. Tentar especificar de antemão quem será julgado, o que será feito com eles, e assim por diante, é um exercício fútil e inútil. Tudo dependerá da correlação de forças entre as classes. Quanto mais débil for a posição da classe trabalhadora e mais forte a resistência burguesa, será necessário maior uso direto da força revolucionária. E quanto maior for a força da classe trabalhadora, mais e mais as simples sanções legais serão suficientes.
Por essa razão a única experiência real de poder dos trabalhadores que tivemos até hoje – os anos iniciais da revolução russa – não podem ser considerados como um modelo para a prática futura. A posição da classe trabalhadora russa enquanto uma pequena minoria em um país economicamente atrasado e devastado pela guerra, pela contra-revolução armada e a intervenção militar estrangeira massiva, era excepcionalmente difícil. Os bolcheviques não tiveram escolha a não ser introduzir um regime altamente autoritário.
É muito claro que em qualquer grande país dos dias de hoje – incluindo todos os países mais desenvolvidos do Terceiro Mundo, onde o nível de forças produtivas, o padrão de vida e o tamanho da classe trabalhadora são muito mais elevados do que na Rússia de 1917 – a posição da classe trabalhadora é muito mais favorável. Nessas circunstâncias a repressão que será necessária será a repressão sobre uma pequena minoria, exercida por uma maioria esmagadora e, assim, será muito menos severa, não só em comparação com a Rússia revolucionária, mas também com relação à repressão que é empregada para manter o domínio dos exploradores na sociedade capitalista atual.
Além disso, uma vez que a revolução se amplie a outros países (uma questão que trataremos adiante) a necessidade da repressão desaparecerá rapidamente na medida em que a própria burguesia passar para a história e a restauração do capitalismo tornar-se cada vez mais uma possibilidade remota.
Com relação à liberdade de expressão, de imprensa e de organização política, é possível termos uma boa idéia. A burguesia faz muito alarde sobre o seu compromisso com essas liberdades, mas na prática a estrutura econômica do capitalismo restringe continuamente a possibilidade das pessoas comuns usufruirem esses direitos. Pelo contrário, o poder dos trabalhadores significará, desde o seu início, um enorme aumento na real liberdade em todas essas áreas para todas os setores da população, menos a velha classe dominante e aqueles que incitem a contra-revolução.
O Estado dos trabalhadores tomará os estabelecimentos e as instalações e tornará realidade a participação de massas no debate público. Sobretudo os locais de trabalho, onde a liberdade de expressão é cerceada pelo poder, sempre presente, do patrão de empregar, promover e demitir, se tornarão centros de discussão democrática. E, o que é mais importante, as pessoas desejarão participar nas discussões porque tudo o que for dito, em vez de ser apenas saliva desperdiçada e protesto inútil, terá um efeito direto sobre a organização do seu dia-a-dia.
No capitalismo a liberdade de imprensa é um mito. A publicação de jornais, sendo um negócio, é controlada pelos grandes capitalistas, isto é, pela classe dominante. Com o poder dos trabalhadores as gráficas, estoques de papel, etc., serão nacionalizados, mas seu uso será aberto a grupos e organizações populares. Isso levará a uma diversidade muitíssimo maior de opiniões e a um debate muito mais vigoroso que o que temos hoje.
A televisão, o rádio, e outros meios de comunicação de massa também serão abertos ao uso público. Essas instituições representam um enorme potencial, quase que completamente inexplorado pelo capitalismo, para a participação de massas. Em vez de serem canais de comunicação de uma mão só – isto é, deles para nós -, a mídia se tornará um meio através do qual diferentes setores da classe trabalhadora se comunicarão entre si, colocando seus problemas, opiniões, propostas e experiências.
O Estado dos trabalhadores não será um Estado de um só partido. A própria classe trabalhadora fornecerá a base para inúmeros partidos representando diferentes nuances de opinião e interesses e haverá espaço mesmo para partidos de outras camadas sociais, como o campesinato e setores da classe média, uma vez garantido que não sejam contra-revolucionários.
As organizações sindicais florescerão e terão um grande papel a cumprir na direção do governo e da economia. Mas os sindicatos manterão o seu direito à greve, uma vez que mesmo em um Estado de trabalhadores setores da classe trabalhadora podem precisar defender seus interesses contra possíveis abusos e, assim, devem manter essa arma.
Resumindo, o poder dos trabalhadores significará uma real explosão de liberdade para os explorados, os oprimidos e pisoteados pelo capitalismo.
A conquista do poder econômico
Os alicerces do socialismo, como de qualquer outra forma de sociedade, estão na economia.
Sendo assim a classe trabalhadora usará imediatamente o seu poder para conquistar o poder econômico, isto é, para tomar em suas mãos todos os principais meios de produção da sociedade. A menos que isso seja feito bastante rapidamente os trabalhadores serão incapazes de manter o seu domínio político.
O mecanismo formal através do qual o poder econômico será estabelecido é um mecanismo familiar, a nacionalização.
É provável que o processo comece como na revolução russa, com a nacionalização de toda a terra. Uma vez que a terra é irremovível, esta é uma medida extremamente simples e pode ser executada por decreto no primeiro dia da revolução. Também são urgentes a nacionalização dos bancos e a imposição de um controle estrito sobre o câmbio, apoiados por outras medidas revolucionárias para impedir as inevitáveis tentativas de fuga de capitais para o exterior.
A partir daí o Estado dos trabalhadores se voltará para a tomada das principais firmas e indústrias. Pequenas firmas empregando poucos trabalhadores podem ser deixadas para depois. A tarefa imediata é ganhar o controle das alavancas decisivas do poder econômico.
É importante distinguir claramente entre essa nacionalização revolucionária e o tipo de nacionalização proposto por partidos como o PT e aquelas realizadas no passado por governantes burgueses como Getúlio Vargas ou João Goulart. Ambas são formas de propriedade estatal. Mas no nosso caso, o Estado em questão é uma organização coletiva da classe trabalhadora, diferentemente das nacionalizações do passado sob um Estado capitalista – uma organização da classe dos capitalistas.
Assim, em primeiro lugar, as nacionalizações não serão simplesmente ações realizadas a partir de cima pelo poder central do Estado. Esse processo combinará a expropriação legal com a ação dos trabalhadores na base, em muitos casos através de ocupações de fábricas.
Em segundo lugar, as nacionalizações serão feitas sem o pagamento de compensações, uma vez que o objetivo da ação é justamente o de quebrar o poder econômico da burguesia.
Em terceiro lugar, e mais importante, as nacionalizações estarão sob controle dos trabalhadores. É impossível prever as formas exatas de como isso se dará, mas provavelmente cada fábrica ou local de trabalho será administrado por um conselho eleito que será submetido a reuniões periódicas do conjunto de trabalhadores. Algo similar se aplicaria à administração de ramos industriais inteiros, mas com representantes dos sindicatos e do governo dos trabalhadores.
O controle dos trabalhadores sobre a indústria é essencial. Uma classe trabalhadora que é incapaz de controlar seus próprios locais de trabalho não será capaz de controlar o seu Estado. Se o controle das novas indústrias estatais é transferido para uma burocracia privilegiada, como aconteceu na Rússia, cedo ou tarde isso exercerá uma influência decisiva na sociedade, e as próprias divisões de classe se restabelecerão.
É claro que freqüentemente se coloca dúvidas sobre a capacidade dos trabalhadores de administrar a indústria. «Serão necessários especialistas», é o vozerio geral. » E os especialistas e técnicos é que realmente controlam as coisas», se diz.
Tais afirmações subestimam a capacidade da classe trabalhadora e distorce o papel dos técnicos especialistas. Mesmo no capitalismo são geralmente os trabalhadores, e não a administração, quem tem o melhor domínio do processo de produção. Muitas das qualificações da administração dizem respeito não à produção, mas ao marketing e à «arte» de manter a exploração, qualificações que serão inúteis na nova sociedade.
Quanto aos especialistas, eles serão necessários por um período até que a formação dos trabalhadores seja melhorada drasticamente. Mas eles apenas trabalharão para – e sob a direção da – fábrica ou conselho industrial, do mesmo modo como hoje eles trabalham para os seus patrões. Se eles, por acaso, obstruírem ou sabotarem a produção, serão disciplinados e punidos, do mesmo modo como seriam hoje caso obstruíssem ou sabotassem a produção de uma empresa capitalista.
Se for absolutamente necessário eles terão que trabalhar mesmo com as armas dos trabalhadores apontadas sobre as suas cabeças, mas na verdade é razoável supor que uma revolução socialista vitoriosa acabará por conquistar essas pessoas.
Uma vez que a propriedade e o controle da indústria sejam estabelecidos, será possível iniciar a introdução de uma economia planificada. Mais uma vez é preciso distinguir entre o plano socialista e o plano capitalista e capitalista-estatal às quais estamos familiarizados. O plano socialista não será um esquema rígido imposto a partir de cima. A classe trabalhadora deve ser o sujeito, e não o objeto, do plano.
O processo de planejamento começará na base, nas reuniões por local de trabalho, conselhos de fábrica e conselhos de trabalhadores, as quais determinarão as necessidades e prioridades das pessoas e uma avaliação das capacidades produtivas de cada local de trabalho. Com base nisso o governo terá que esboçar um plano coerente que combine a capacidade de realização com as necessidades e exigências. Todo o plano terá depois que ser submetido à classe trabalhadora para debate, e aos seus representantes nos conselhos para emenda e aprovação.
Será um processo altamente democrático, e é somente numa base democrática que o plano pode vingar. Pois como demonstrou a experiência da Rússia stalinista o plano burocrático e autoritário leva a falsas informações alimentadas na base e ao cumprimento meramente formal, e não real, do plano.
A realização de uma economia planificada socialista não só resolverá os piores problemas econômicos do capitalismo (desemprego, inflação, etc.), mas também abrirá possibilidades imensas para o futuro.
Neste ponto é impossível adiar a questão da ampliação da revolução a outros países. Caso esse problema não seja resolvido todas as esperanças e planos para o socialismo não serão nada.
Ampliando a revolução: a dimensão internacional
Seria extremamente propício para o socialismo e a classe trabalhadora se a revolução socialista ocorresse mais ou menos simultaneamente em vários países. Entretanto neste texto tenho assumido o pressuposto de uma revolução ocorrendo primeiramente em apenas um país.
Essa posição é realista. A experiência das revoluções até os dias de hoje sugere que, apesar da internacionalização e globalização crescentes do mundo moderno, as diferenças nos padrões nacionais da luta de classes são tais que o processo revolucionário ocorrerá inicialmente, com toda a probabilidade, em um único país.
Sendo esse o caso a ampliação da revolução para além das fronteiras nacionais será uma tarefa de importância primordial para o jovem Estado dos trabalhadores. Essa tarefa não é apenas uma questão de dever internacionalista, mas é também de importância vital para a auto-preservação da revolução.
O socialismo não pode ser construído em um só país. Na verdade um Estado dos trabalhadores não pode sobreviver por tempo indeterminado se permanecer isolado. É claro que é possível suportar um período contra a pressão do capitalismo internacional, do mesmo modo que os trabalhadores podem manter por um certo tempo uma ocupação de fábrica ou uma revolta numa cidade. Mas, cedo ou tarde, a menos que se espalhe, a revolução será derrotada. Ou o capitalismo mundial esmagará a revolução através de uma intervenção militar ou a ameaça de tal intervenção, combinada com uma intensa pressão econômica, acabará obrigando o Estado revolucionário a competir com o capitalismo dentro das regras do capitalismo. Isso significará uma luta competitiva para acumular capital.
Se esta última possibilidade se concretizar, como ocorreu na Rússia no final da década de 20, uma nova classe exploradora surgirá como agente da acumulação capitalista, e o capitalismo será restaurado por uma contra-revolução interna.
Mas a derrubada de todo o sistema capitalista pode parecer uma tarefa um tanto quanto difícil. Portanto a questão que devemos responder é se ela é possível ou não.
Aqui, como em qualquer outra área da luta de classes, é naturalmente impossível dar qualquer garantia. Mas existe uma série de fatores que permite dizer com confiança que essa tarefa pode ser realizada.
A natureza internacional da economia capitalista também torna as crises internacionais. Assim a crise subjacente à revolução de um país já estará afetando outros países. Caso a primeira revolução ocorra em uma grande economia a crise se tornará ainda mais profunda.
Uma revolução na África do Sul, por exemplo, não só teria um efeito devastador nos mercados mundiais do ouro e do diamante, mas também mudaria completamente a situação no sul do continente africano. Uma revolução no Brasil teria um efeito semelhante em toda a América Latina.
O impacto político da revolução será ainda mais importante, como foi demonstrado pelas ondas de choque que a revolução de 1917 enviou pelo mundo, com revoluções e revoltas na Europa, greves e rebeliões em lugares tão distantes como Glasgow e Seattle. A própria existência de um verdadeiro poder dos trabalhadores causará uma crise ideológica na classe dominante tanto dos países capitalistas de mercado como nos países pretensamente «socialistas» – na realidade capitalismos de Estado – como China, Cuba e Coréia do Norte. Ao mesmo tempo colocaria em xeque a identificação, alimentada tanto pela propaganda capitalista como pela experiência do stalinismo, do socialismo com um regime tirânico e opressor.
Ao mesmo tempo a revolução dará inspiração aos movimentos proletários do mundo todo. Mostrará que a classe trabalhadora pode tomar o poder em suas mãos e, dessa forma, facilitará infinitamente a defesa do ideal socialista. Ao mesmo tempo as divisões e rachas no movimento socialista e revolucionário serão cicatrizados, uma vez que haverá provas concretas da estratégia e táticas necessárias para se alcançar a vitória.
Tudo isso será bastante favorecido pelos modernos meios de comunicação. Após a revolução russa – a última vez em que houve uma chance real de revolução internacional – foram necessários meses para que os revolucionários do resto do mundo tivessem uma idéia clara do que havia acontecido na Rússia. A realidade da revolução futura, pelo contrário, será conhecida rapidamente, seja através das imagens de TV ou mesmo via Internet.
Mas obviamente a revolução vitoriosa não irá cruzar os braços e esperar que tudo isso aconteça. Irá se esforçar o máximo para apressar o processo.
Não é uma questão de tentar impor a revolução invadindo outros países, muito embora o novo poder dos trabalhadores deva estar preparado para dar assistência militar a outras lutas revolucionárias. Significa que o Estado dos trabalhadores usará a sua autoridade para conclamar aos trabalhadores do mundo todo para derrubarem seus exploradores e opressores. Isso significa organizar um movimento revolucionário a nível internacional.
O novo Estado formará, caso não exista ainda, uma Internacional dos trabalhadores para construir, coordenar e unir partidos revolucionários do mundo todo.
Uma vez que o poder dos trabalhadores se estenda a vários outros países todos os fatores a que nos referimos anteriormente serão acentuados enormemente. A luta pelo socialismo internacional ganhará um impulso irresistível. Nos anos 60 os estrategistas do imperialismo norte-americano temiam o «efeito dominó» do Vietnã e de outras lutas de libertação nacional. O efeito dominó das revoluções proletárias, com uma perspectiva internacionalista, será muito, muito maior.
Neste ponto permita-nos dar um salto e consideremos que a revolução socialista tenha triunfado em escala mundial. É uma grande pretensão. Mas não é nada impossível nem utópico, como já vimos. Vale a pena considerar algumas de suas implicações.
Significará que a ameaça da contra-revolução capitalista terá acabado de uma vez por todas e que a ameaça da aniquilação nuclear da raça humana terá sido eliminada.
Significará que as guerras, que neste século tomaram muito mais de cem milhões de vidas, cessarão. Significará que os problemas de fome, pobreza e subdesenvolvimento poderão ser resolvidos e superados de um modo coordenado. As pessoas poderão se mover livremente pelo mundo, e as raízes do racismo serão extirpadas.
Significará que o socialismo internacional, bem como o aproveitamento dos recursos mundiais para o benefício da humanidade unida, se tornarão realidade.
Produzindo para as necessidades: rumo à abundância
O estabelecimento de uma economia socialista planificada porá um fim às crises cíclicas do capitalismo que sempre resultam na destruição e desperdício de recursos produtivos através de falências, sub-investimento, super-produção e desemprego em massa. Isso significará que os imensos recursos científicos, tecnológicos, econômicos e humanos que hoje são canalizados para agressões e guerras serão redirecionados para propósitos socialmente úteis.
Quando você considera que um tanque moderno custa mais de 1 milhão de dólares, que o sistema de mísseis Trident custa algo como 20 milhões de dólares, dá para se ter uma idéia do potencial econômico que será liberado quando se puser um fim à indústria da destruição e da morte.
O socialismo também acabará com o enorme desperdício inerente à produção capitalista com a sua duplicação de esforços – a manufatura de numerosas variantes de um mesmo produto, sejam sabonetes, rádios ou carros, que são iguais em essência. Colocará um fim às gigantescas somas de dinheiro que são desperdiçadas na propaganda de produtos e na produção de luxos supérfluos para os ricos. A qualidade e a produtividade do trabalho aumentarão enormemente porque os produtores – pela primeira vez – terão um interesse direto na produção, serão mais saudáveis e terão uma formação educacional muito melhor.
Resumindo, o socialismo internacional trará um desenvolvimento fenomenal das forças produtivas que eclipsarão tudo o que foi conseguido nessa esfera durante toda a história passada.
É esse avanço econômico que proporcionará a base material para a transição a uma sociedade completamente sem classes.
Em primeiro lugar tornará possível fornecer alimentação, vestuário e moradia adequada para todos os habitantes deste planeta. Nunca mais alguma criança morrerá de desnutrição ou de qualquer doença facilmente prevenível ou curável. Só isso já seria mais do que suficiente para justificar o socialismo. Mas na verdade é apenas o começo do que o socialismo oferecerá. Além da conquista de um padrão de vida decente para todos, está no caminho rumo à abundância e a distribuição gratuita de acordo com as necessidades.
Este ponto é fundamental para a concepção marxista do estágio superior do socialismo, ou comunismo como o chamou Marx, e merece uma discussão à parte.
Desde o começo a revolução socialista produzirá uma grande equalização na distribuição de bens em comparação com as desigualdades gritantes que são geradas pelo capitalismo. As enormes acumulações de riquezas que se deram às custas da exploração e da propriedade privada serão expropriadas, e os salários de marajás pagos pela classe dominante aos seus membros e a um setor da classe média desaparecerão. Os salários dos trabalhadores e, em particular, daqueles de renda mais baixa serão rapidamente elevados.
Entretanto, inicialmente – porque o socialismo começa com os recursos herdados do capitalismo – o suprimento de bens permanecerá limitado e os trabalhadores ainda trabalharão por salários pagos em dinheiro para poderem comprar esses bens. Mas progressivamente o socialismo aumentará a produção de uma gama cada vez maior de bens até o ponto em que a oferta supere a procura. Nesse momento se tornará possível cessar de vender esses bens e passar a distribuí-los de acordo com as necessidades.
Para ilustrar como isso pode ser feito tomemos o exemplo da água. Em muitas partes do mundo a distribuição de água – especialmente água limpa – permanece precária e insuficiente, quando não inexistente. Mas em todos os países industrializados avançados o problema da água foi superado – mesmo no capitalismo. Há água mais do que suficiente para todo mundo. Isso não resulta num consumo tresloucado de água pelas pessoas. Afora uma certa quantidade de desperdício, que é perfeitamente contornável, as pessoas simplesmente consomem o quanto necessitam.
O que o capitalismo foi capaz de fazer com a água o socialismo – com o crescimento das forças produtivas a que nos referimos antes – será capaz de fazer com as demais coisas.
A moradia será uma área óbvia para começar. Nós simplesmente construiremos mais casas do que o número de pessoas que necessitam de moradias e as alocaremos de acordo com a necessidade. Para mudarem de residência as pessoas simplesmente se transferirão para moradias vagas ou trocarão de casa com outras pessoas, ao invés de comprá-las e vendê-las. Com isso não só resolveríamos o problema dos sem-teto como simplificaríamos infinitamente as coisas, em contraste com o complexo e tedioso sistema de compra e venda de casas que temos atualmente.
Não é preciso dizer que a educação e os serviços de saúde serão completamente gratuitos. O mesmo passará com o transporte público que será estendido de forma massiva (provavelmente até chegar ao ponto em que carros particulares se tornarão desnecessários).
Com o tempo o princípio da distribuição gratuita se estenderá da água, habitação, saúde, educação e transporte para a alimentação, vestuário, comunicações, diversão, e assim por diante, até que abarque todas as coisas. A compra e venda de bens e serviços desaparecerá. O dinheiro – aparentemente o deus todo-poderoso da sociedade capitalista, mas que é na realidade apenas o meio pelo qual os produtos do trabalho humano são trocados – perderá sua utilidade até o momento em que será dispensável.
Graças à doutrinação capitalista que todos nós recebemos desde a infância isso pode parecer estranho. Mas dada a premissa de que o socialismo internacional irá deslanchar as forças produtivas até então confinadas e restringidas pelo capitalismo, não há nada de irreal nisso.
Na verdade há apenas um contra-argumento sério – o de que se tudo for de graça ninguém vai querer trabalhar.
A transformação do trabalho
O trabalho é central para a vida humana, para a vida do indivíduo e para a vida da sociedade. Foi através do trabalho, através do ato de produzir, que a espécie humana se diferenciou primeiramente dos outros animais.
É a experiência do trabalho o principal fator na formação da personalidade de cada indivíduo. O modo pelo qual uma sociedade trabalha para produzir os bens é a base de todas as relações sociais e políticas.
Mas no capitalismo o trabalho é uma experiência negativa para a vasta maioria do povo, isto é, a classe trabalhadora. É uma atividade destrutiva para o corpo e para o espírito. O trabalho é a tal ponto fragmentado que as pessoas são obrigadas a se especializarem por toda a vida na repetição interminável de tarefas mecânicas e restritas. É exaustivo, humilhante e, sobretudo, chato. Esse trabalho produz luxo, diversão e cultura para os capitalistas, mas para os trabalhadores produz apenas personalidades e vidas atrofiadas.
A transformação do trabalho é, portanto, uma tarefa central da revolução socialista. A longo prazo é a tarefa mais importante de todas.
Os primeiros passos da revolução – a nacionalização das indústrias sob controle dos trabalhadores – assentará a base para essa transformação ao por um fim à exploração e a busca dos lucros que fazem do trabalho o que é sob o capitalismo. Desde o começo a experiência do trabalho será modificada pelo controle dos trabalhadores. Colocará um ponto final às humilhações que os trabalhadores sofrem nas mãos dos patrões, administradores e capatazes de todos os tipos. Fará da segurança a primeira prioridade e fará com que o trabalho ganhe mais interesse.
Mas no início o trabalho real – minerar, operar máquinas, digitar cartas, etc. – ainda vai ser tão duro quanto o é no capitalismo, e não poderia ser de outra forma. Mas conforme se desenvolverem as forças produtivas tudo isso mudará completamente, numa mudança que envolverá três processos ligados entre si.
Em primeiro lugar, a jornada de trabalho será sistematicamente reduzida. No capitalismo os avanços tecnológicos são utilizados para demitir trabalhadores. Nós presenciamos a combinação de milhões de trabalhadores realizando horas extras e outros milhões desocupados. Com o planejamento socialista o trabalho total necessário será compartilhado igualmente, e cada avanço tecnológico diminuirá a quantidade de trabalho físico a ser feito pelos trabalhadores.
Isto é crucial – não só porque reduzirá o cansaço físico, mas também porque liberará os trabalhadores para se desenvolverem na educação e na cultura e tomarem parte na administração da sociedade em todos os seus aspectos.
Em segundo lugar, a automação será usada para eliminar os trabalhos mais cansativos e alienantes. Uma vez que no capitalismo os robôs já são usados em grande escala pelas grandes indústrias e a tecnologia já permite enviar satélites para longínquos planetas, não é preciso ser nenhum sonhador para ver que grande parte dos trabalhos domésticos, limpeza de rua, de mineração, linha de produção, etc, poderão ser automatizados facilmente.
Em terceiro lugar, a divisão de trabalho será superada progressivamente. Essa divisão tem dois aspectos principais. De um lado há a divisão entre trabalho mental e trabalho manual – entre planejadores e planejados, controladores e controlados – que surgiu com a divisão da sociedade em classes de exploradores e de explorados. Por outro lado existe a fragmentação do processo produtivo em tarefas cada vez menores que carecem totalmente de qualificação, interesse, ou criatividade, que é particularmente o produto da industrialização capitalista.
É a combinação dos fatores mencionados – o controle dos trabalhadores, a redução do tempo de trabalho e a automação do trabalho – que eliminarão ambos os aspectos da divisão do trabalho.
Todos serão ao mesmo tempo produtores e planejadores da produção. Todos terão o tempo, a energia e a educação para participar na formação coletiva do ambiente – trabalho que exigirá a fusão do conhecimento artístico, científico e social, o qual será um processo criativo coletivo.
Nessas condições o trabalho se tornará – nas palavras de Marx – «não apenas um meio de vida, mas a necessidade primeira da vida». Cessará de ser uma necessidade cansativa para se tornar em um prazer positivo – um meio de expressão humana, individual e coletiva.
Seres humanos não são preguiçosos por natureza. Observe aquilo que seria mais próximo daquele ser mítico, uma pessoa «natural» – um bebê ou uma criança – e você verá que eles ou elas transbordam de curiosidade, energia e entusiasmo para aprender, para a atividade e para a vida. É o capitalismo, com a sua opressão e o trabalho alienado, que esgota as pessoas, que as desmoraliza, destroe a sua energia e as convence de que a vida é melhor sentado diante de um aparelho de TV.
Olhe para o imenso esforço dispendido por muitos trabalhadores em seus passatempos, ou em suas atividades no movimento sindical ou popular. Não é difícil ver como – quando o trabalho é para si próprio e não para uma classe de exploradores, e quando é variado e interessante – virá o tempo quando não será preciso nenhuma compulsão física ou econômica para que o trabalho socialmente necessário seja realizado.
O socialismo trará de modo conjugado, em seus estágios mais elevados, o hábito de realizar trabalhos estimulantes e criativos, o planejamento da produção para suprir as necessidades humanas, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e a distribuição gratuita de um suprimento abundante de bens e serviços.
Uma vez que se chegue a esse ponto, não haverá obstáculo para a sociedade inscrever em suas bandeiras o princípio socialista último: «De cada um de acordo com a sua capacidade, a cada um de acordo com a sua necessidade».
A libertação das mulheres
Tem se tornado um lugar-comum entre as feministas de que uma revolução socialista não libertará automaticamente as mulheres.
Elas, com certeza, estão certas. Pois mesmo após uma revolução nada acontece automaticamente. A história é feita por seres humanos, e a libertação das mulheres só será conseguida através de luta.
Entretanto a revolução socialista irá iniciar o processo de abolição da opressão secular a que as mulheres estão submetidas. A transição para o socialismo o completará. A razão disso é simples. O socialismo é antes de mais nada a auto-emancipação da classe trabalhadora, e a maioria da classe trabalhadora é formada por mulheres. Assim sendo, sem a completa emancipação das mulheres é impossível falar de completa emancipação da classe trabalhadora e, portanto, impossível falar de socialismo.
Isso não faz com que a libertação das mulheres seja automática. Mas torna a luta pela emancipação feminina uma tarefa central na transição para o socialismo. Assim, do mesmo modo como as esposas dos mineiros que lutaram naquela greve { a grande greve dos mineiros de 1984 na Grã-Bretanha, N.doT.} foram transformadas pela experiência, as mulheres trabalhadoras que tiverem feito a revolução não aceitarão jamais o papel de cidadãs de segunda classe.
De que modo, então, se conquistará a libertação das mulheres?
Primeiro virá uma série de medidas legais muito simples e diretas que podem e irão ser tomadas imediatamente pelo Estado dos trabalhadores. Essas medidas incluem a abolição de todos os vestígios de desigualdade entre homens e mulheres e tornar ilegal qualquer forma de discriminação contra mulheres; o estabelecimento do direito à livre contracepção e ao aborto; o direito do divórcio imediato e o direito a salários e oportunidades de trabalho iguais.
Pode-se objetar que muitas dessas medidas já existem atualmente, e que são ineficazes na prática. Mas aqui devemos nos lembrar que o contexto será completamente diferente. O fato de que o Estado dos trabalhadores será o principal empregador – e no futuro virtualmente o único – e que todas as principais instituições da sociedade estarão sob o controle democrático dos trabalhadores é a garantia de que essas leis serão traduzidas para a realidade.
Muitas outras mudanças sociais também contribuirão para facilitar esse processo. Haverá ensinamento anti-sexista nas escolas, e onde permenecerem professores sexistas certamente eles serão firmemente corrigidos pelos(as) estudantes. As mudanças na propriedade e no controle dos meios de comunicação também favorecerão a libertação das mulheres, uma vez que passarão a ser instrumentos contra o machismo, ao contrário do que é hoje.
Uma vez que, com a abolição da concorrência capitalista, desaparecerão as propagandas comerciais, também desaparecerá o uso explorador e sexista da imagem das mulheres para promover produtos. Todas as formas de violência contra mulheres serão seriamente combatidas.
Mas por mais necessárias e importantes que sejam essas medidas, elas não irão à raiz do problema. Elas tratam os sintomas e efeitos da opressão feminina, mas não a sua causa. Essa causa está na posição das mulheres no interior da família e o papel que a família tem cumprido nas sociedades de classes, em particular no capitalismo.
Na sociedade capitalista a tarefa de educar e cuidar das crianças (falando em termos econômicos, a reprodução da força de trabalho) é responsabilidade da família nuclear privada. E no interior da família o fardo desse trabalho recai sobre a mulher. As vantagens disso para o capitalismo são óbvias: o sistema capitalista tem a sua força de trabalho reproduzida e renovada a custos mínimos, ao mesmo tempo em que divide e fragmenta a classe trabalhadora.
As desvantagens para as mulheres são igualmente claras. O seu acesso ao trabalho pago é restringido e interrompido; as suas perspectivas profissionais são prejudicadas; elas tendem a ficar isoladas em casa e, em maior ou menor grau, elas são economicamente dependentes de seus maridos.
Esta é a raiz do problema que terá que ser resolvida para que se alcance realmente a libertação completa e permanente das mulheres como parte do processo de transição para o socialismo.
Mas a família não é uma instituição que pode ser abolida do dia para a noite por decreto. Ela tem que ser substituída. E mais ainda, as instituições que a substituirão terão que superar a família na satisfação das necessidades humanas, para que as pessoas as adotem voluntariamente.
A tarefa chave é a socialização eficiente e cuidadosa do trabalho doméstico e da educação das crianças. Isso significa criar uma rede abrangente de restaurantes comunitários que sirvam uma variedade de alimentos bons e baratos (eventualmente gratuitos). Significa fornecer lavanderias comunitárias e serviços de limpeza doméstica. Significa, sobretudo, fornecer sistema eficiente de saúde pública e de creches para todas as crianças e serviços de baby sitter adequados para todos os pais.
Quanto mais se desenvolvam os padrões de vida comunitária, o que é muito provável que aconteça, mais fácil se tornará resolver esses problemas. Quando isso se tornar real o fato de ter filhos deixará de ser um fardo socialmente desvantajoso para se tornar numa experiência positiva compartilhada igualmente por homens e mulheres.
Do mesmo modo a questão de com quem as pessoas vivem, e por quanto tempo, será uma simples questão de escolha pessoal, sem o cerceamento das pressões econômicas ou dos velhos códigos religiosos e convenções sociais que refletem essas pressões.
As mulheres estarão, finalmente, livres da subordinação a que foram submetidas desde o início da sociedade de classes.
Certamente a implementação de um programa desses exigirá grandes recursos econômicos, forte vontade política e envolvimento de massas. Nenhum governo capitalista teria a pretensão de realizá-lo, e jamais o conseguiria. É por essa razão que é somente através do socialismo que as mulheres conquistarão a sua libertação.
E lado a lado com a emancipação feminina virá a libertação dos gays e lésbicas. Naturalmente todas as medidas legais e educacionais aplicadas para combater a opressão das mulheres serão igualmente aplicadas com relação a todos os homossexuais.
Mas em última instância será a abolição da família burguesa e a conquista da real igualdade para as mulheres que removerá a base da homofobia. Um mundo onde a família não seja mais necessária, e onde ser um «homem» não signifique ser superior às mulheres será um mundo onde os homens gays e as mulheres lésbicas não serão vistos como ameaças por ninguém.
O fim do racismo
O racismo é um dos traços mais perniciosos e horríveis do capitalismo. As gerações do futuro socialista terão que fazer um grande esforço para serem capazes de entender o racismo, não apenas em relação aos grandes crimes – como o holocausto nazista e o Apartheid – mas com as manifestações relativamente «menores» como a histeria nos países ricos por causa de alguns milhares de visitantes asiáticos e latinos.
Sem dúvida elas considerarão tais episódios como uma evidência clara de que a sociedade que os produziu estava fundamentalmente apodrecida. Pois o socialismo terá erradicado o racismo.
Com isso eu não quero dizer apenas que o socialismo combaterá o racismo. Não é necessário nem dizer que a revolução socialista lançará uma guerra determinada e implacável contra todas as formas de racismo. O estado dos trabalhadores tratará como crime todas as discriminações raciais, perseguições de cunho racista e todas as expressões da ideologia racista. As escolas e os meios de comunicação se combinarão para educar a população dentro de um espírito de anti-racismo militante.
Mas eu quero dizer muito mais do que isso. Quero dizer que a revolução socialista destroçará as raízes do racismo de um modo que venha se tornar uma relíquia histórica tão anacrônica, absurda e irrelevante como a caça às bruxas na Idade Média.
Para sabermos como isso acontecerá precisamos entender, primeiro, que raízes são essas.
O racismo, ao contrário das teorias colocadas por pessoas que na verdade são defensores do racismo, não é uma reação «natural» ou «instintiva» aos «forasteiros». Nem é uma reminiscência de superstições primitivas baseadas na ignorância. Ao contrário da opressão das mulheres, não é nem mesmo um produto da sociedade de classes em geral.
O racismo é um produto bastante específico do surgimento e desenvolvimento do sistema econômico capitalista. Não era um traço das sociedades pré-capitalistas, nem mesmo das sociedades escravistas da Grécia ou Roma. Nestas sociedades tanto escravos quanto proprietários de escravos eram brancos e negros. Embora idéias anti-escravos («escravos são inferiores por natureza» e assim por diante) fossem comuns, elas não tinham conotação racial ou com relação à cor da pele .
A origem do racismo está no comércio escravagista, na prática de aprisionar e transportar milhões de negros da África para as Américas para que trabalhassem como escravos nas plantações. .
Esse comércio, assim como a escravidão, foram realizados por razões econômicas. Eram atividades altamente lucrativas e tiveram um grande papel na ascenção do capitalismo. Mas como todas as formas de exploração elas exigiam uma justificação ideológica, e ela foi suprida pela ideologia racista. O tratamento desumano de milhões de pessoas foi legitimado pela teoria de que essas pessoas eram sub-humanas.
O racismo que se desenvolveu do comércio escravagista foi depois reforçado e estimulado pelo imperialismo como um todo. O capitalismo, surgindo inicialmente na Europa Ocidental (desenvolvendo-se particularmente na Inglaterra), foi levada pela sua natureza competitiva a vasculhar o mundo em busca de mercados para seus produtos e colônias para servirem de escoadouros para os seus investimentos e fontes de mão-de-obra barata. Isso inevitavelmente colocou os mercadores, missionários, homens de negócios, políticos e soldados do capitalismo europeu em conflito com as populações nativas das Américas, Ásia e África – isto é, com os povos negros e não-brancos do mundo.
Mais uma vez era necessária uma justificativa. Não havia outra melhor do que o argumento de que esses povos eram como crianças, primitivas e incapazes, e que todo o processo de pilhagem e roubo era para o próprio bem deles. Era o «fardo do homem branco» levá-los lentamente à «civilização».
O racismo, entretanto, não é apenas uma herança do imperialismo, pois está sendo continuamente revigorado e reciclado pelo capitalismo contemporâneo. Pois o capitalismo se baseia não só na concorrência entre capitalistas, mas também na competição e divisão entre os próprios trabalhadores.
A estrutura da economia capitalista encoraja os trabalhadores a verem os outros trabalhadores como rivais na aquisição de empregos, casas, e assim por diante. É somente com a superação dessa concorrência que os trabalhadores serão capazes de vencer o capitalismo.
Consequentemente todas as idéias que colocam os trabalhadores uns contra os outros impedindo a unidade da classe – como o machismo, a homofobia, o nacionalismo e sobretudo o racismo – são de grande valia para os patrões. O racismo também proporciona ao sistema e à classe dominante um bode expiatório extremamente conveniente para o desemprego e outras mazelas sociais produzidas pelo capitalismo.
Por essas razões o capitalismo, aberta ou discretamente, mas sempre persistentemente, alimenta as chamas do racismo, para que esta arma esteja sempre à mão quando lhe for necessária.
Nada disso sugere que o problema do racismo será resolvido facilmente, menos ainda que desaparecerá de uma hora para outra com a revolução. Pelo contrário, as raízes do racismo são bastante profundas. O xis da questão é que essas raízes são raízes capitalistas e, portanto, no momento em que o capitalismo for destruído elas serão privadas do solo que as alimentava e começarão a definhar.
Além disso, o próprio processo revolucionário golpeará profundamente o racismo. Em primeiro lugar, porque os próprios trabalhadores negros assumirão um papel poderoso e dirigente na revolução. Em segundo lugar, porque a menos que se consiga a unidade entre os trabalhadores brancos e negros (sobre a base de oposição total ao racismo) a revolução não pode ter esperanças de vitória. Em terceiro lugar, porque uma classe trabalhadora vitoriosa e confiante que tenha passado pela experiência iluminadora da luta revolucionária não terá nenhuma necessidade de bodes expiatórios.
Uma sociedade socialista que se construa sobre essa base sólida, unindo os trabalhadores enquanto proprietários e controladores coletivos da produção e não dividindo-os, que seja capaz de resolver os problemas de desemprego, de falta de moradia e de pobreza, e que se amplie através da solidariedade internacional e não da conquista imperialista, será capaz de eliminar com rapidez e consistência os últimos vestígios do racismo.
Aprendendo para o futuro
A revolução socialista despertará na classe trabalhadora e em todos os oprimidos uma enorme ansiedade por conhecimento e educação. Nós sabemos disso pela própria experiência da revolução russa, onde os trabalhadores lotavam grandes estádios para ouvirem palestras sobre a tragédias grega, e da revolução portuguesa de 1974 quando, por um certo período, o livro O Estado e a Revolução de Lenin encabeçou a lista dos livros mais vendidos, além de muitos outros exemplos.
Milhões de pessoas, geração após geração, se convenceram de que qualquer conhecimento mais sofisticado sobre o mundo é inútil porque «não há nada que você possa fazer» e «as coisas nunca mudarão». Mas de repente, numa revolução, elas se vêem com as rédeas nas suas mãos. Elas são chamadas a controlar e dirigir tudo na sociedade. «Tudo» parece possível, e elas querem saber de tudo.
A tarefa do estado dos trabalhadores será o de criar um sistema educacional que incentivará e desenvolverá esse desejo de aprender. Esse sistema será o oposto do sistema educacional capitalista que temos hoje, o qual absorve crianças ansiosas e curiosas de cinco anos para despejá-las, onze anos depois, amargas, apáticas e cínicas.
O que realmente destrói e distorce a educação atual não é apenas a falta de verbas, por mais séria que possa ser, mas sim o verdadeiro estado de guerra – ora oculto, ora declarado – existente entre professores e alunos. Isso, por sua vez, deriva do papel que cumprem as escolas, no capitalismo, de reproduzir a estrutura de classes da sociedade. As escolas «peneiram» progressivamente aqueles que são destinados às posições da classe dominante e classe média (esta é a função real dos exames e dos vestibulares) e prepara o resto para a exploração e o trabalho alienado. Um sistema cuja estrutura, inevitavelmente, condena a maioria ao fracasso com toda a possibilidade não pode manter o entusiasmo e a cooperação de suas vítimas – não importa quão bem intencionados sejam os professores individualmente. O único modo pelo qual pode funcionar é através da imposição autoritária.
Ao invés disso a educação socialista estará preparando todos, não apenas uns poucos eleitos, para assumirem um papel ativo no planejamento e na administração da sociedade. Sua meta será o desenvolvimento global da personalidade humana.
As escolas serão colaborativas, e não competitivas. De modo algum favorecerão alguns alunos em detrimento de outros. Serão democráticas e não autoritárias. O domínio ditatorial do diretor será substituído pelo conselho da escola formado através de eleição direta, e composto por representantes dos estudantes, professores, funcionários e dos conselhos de trabalhadores. Os professores terão o papel de ajudar os seus alunos no processo de aprendizagem. A disciplina será coletiva, e não imposta.
Aqueles que pensam que isso levará à quebra da ordem e à bagunça generalizada são completamente ignorantes do que acontece nas salas de aula dos dias de hoje, e subestimam completamente o poder de persuasão e convencimento coletivos.
À medida em que a jornada de trabalho for sendo reduzida e os trabalhos mais árduos forem sendo crescentemente automatizados, a educação irá cada vez mais deixando de ser uma atividade que cessa aos 16, 18 ou 21 anos. Passará a ser um processo envolvendo toda a vida de uma pessoa, e vai estar cada vez mais vinculado à busca de soluções para os problemas e tarefas práticas que serão geradas a cada dia pela nova sociedade.
As transformações na área da educação também se ocorrerão na cultura em geral. A sociedade pós-revolucionária produzirá um grande florescimento nas artes, proporcionando aos artistas uma multitude de temas novos e inspiradores. Também fará aflorar uma nova audiência para a arte como parte de um despertar global das personalidades individuais que ocorrerá quando a classe trabalhadora se deslocar das margens da sociedade para o seu centro.
Sem dúvida a música, a pintura, a poesia, teatro, cinema e todas as formas de expressão artística cumprirão um papel tanto na própria luta revolucionária como na construção do socialismo. Mas nem o Estado dos trabalhadores nem o partido revolucionário tentará ditar ou controlar a criação artística. Não haverá uma repetição da desastrosa política stalinista de banir formas artísticas particulares ou de afirmar que apenas um estilo artístico – o chamado «realismo socialista» – é válido. Fora o direito de proibir propaganda diretamente contra-revolucionária, o governo revolucionário promoverá a máxima liberdade nessa área. Sem a existência de uma crítica vigorosa, debate, experimentos e a rivalidade de diferentes escolas artísticas, o desenvolvimento artístico é impossível.
Obviamente é impossível prever a natureza precisa da arte do futuro. Mas eu penso que é possível antever em termos gerais uma mudança fundamental na relação entre arte e sociedade.
A sociedade capitalista, com a sua divisão entre trabalho manual e intelectual, a sua fragmentação e alienação, faz com que a arte e o artista se separem da massa do povo, de um lado, e do trabalho produtivo, de outro. Ambas as separações reforçam-se mutuamente. A arte se torna uma arena privilegiada na qual uma minoria se expressa criativamente, enquanto a grande maioria está condenada ao trabalho mecânico, não-expressivo e não-criativo. Refletindo a divisão da sociedade em classes a arte se divide em «arte elevada» e «arte baixa». O artista «elevado» se torna um membro de uma elite, administrando para uma elite.
O socialismo superará essas separações, não forçando os artistas a serem «populares», nem simplesmente elevando o nível cultural da maioria – embora isso ocorrerá com certeza. Ao invés disso o socialismo tornará todo trabalho um trabalho criativo, e dessa forma todos os produtores se tornarão, por assim dizer, artistas. Do mesmo modo as capacidades de desenhar, pintar, escrever, etc. se tornarão elementos integrais no trabalho coletivo de modelar o ambiente humano.
E do mesmo modo como o produtor se tornará um artista, também o artista se tornará um produtor.
A necessidade à liberdade
A meta final do marxismo, do socialismo e da luta da classe trabalhadora é a liberdade.
Os capitalistas, obviamente, gostam de proclamar o seu compromisso com a liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, do indivíduo fazer o que tem vontade com o seu dinheiro, etc. Eles sabem muito bem que enquanto eles tenham o controle dos meios de produção e, portanto, da riqueza, dos meios de comunicação e do Estado, essas liberdades permanecerão restritas e quase sem sentido para a vasta maioria das pessoas. Eles sabem também que eles tem o poder para limitar ou liquidar essas liberdades quando acharem necessário.
Ao contrário dos capitalistas, os marxistas reconhecem que em uma sociedade dividida em classes antagônicas, baseada na exploração e governada pelo capital, não há e nem pode haver liberdades «absolutas». Nós denunciamos as falsas liberdades abstratas oferecidas pela burguesia porque o que nós queremos é a liberdade real concreta.
Livres da fome e da pobreza (sem isso todas as demais liberdades não significam nada), livres da guerra, da interminável e massacrante labuta, da exploração, da opressão racial e sexual – essas são as liberdades pelas quais lutamos. Elas só podem tornar-se realidade pelo estabelecimento da liberdade positiva da classe trabalhadora para dirigir a sociedade.
Mas no processo de conquista dessas liberdades a classe trabalhadora também abre caminho para uma liberdade que a burguesia jamais sonhou, a liberdade de viver sem a supervisão do Estado.
É comum ouvirmos afirmações que sugerem que os marxistas «acreditam» no Estado. O contrário é verdade. Nós somos oponentes implacáveis do Estado.
O Estado, por sua própria natureza, é um instrumento de dominação e opressão, um meio através do qual uma parcela da população exerce pela força o domínio sobre uma outra parcela. Como afirmou Engels, o Estado consiste basicamente de «corpos de homens armados». Pessoas portam armas ou para matar outras pessoas ou para forçá-las a fazerem coisas contra a sua vontade, isto é, para privá-las de sua liberdade.
Tudo isso se aplica ao novo Estado dos trabalhadores que irá surgir da revolução vitoriosa, do mesmo modo como se aplica ao Estado capitalista. Mas há, obviamente, uma diferença crucial. O Estado capitalista é um instrumento para manter a exploração da maioria por uma minoria. O Estado dos trabalhadores será um instrumento da maioria para suprimir a minoria de exploradores.
Entretanto, mesmo sendo o mais democrático possível, o Estado dos trabalhadores permanece sendo uma instituição que limita a liberdade humana em vários aspectos. De fato, mesmo representando e envolvendo a maioria da classe trabalhadora, o Estado dos trabalhadores não só suprime a velha classe dominante como também coloca certas restrições sobre a liberdade da própria classe trabalhadora.
O Estado dos trabalhadores é um instrumento de guerra de classe, e travar uma guerra significa não só atacar o inimigo, mas também disciplinar as suas próprias forças. Do mesmo modo como um piquete é um instrumento para combater os patrões, atua ao mesmo tempo para disciplinar os trabalhadores mais atrasados politicamente e impedir a ação dos fura-greves.
É por isso que não se pode falar de liberdade completa – de liberdade para todos – até que se desmantele o Estado dos trabalhadores. E isso tem sido o objetivo final dos marxistas, reafirmado repetidas vezes por Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky.
Mas não há nenhuma proposta do marxismo que tenha sido mais atacada como «utópica» do que a do definhamento do Estado. Analisemos os argumentos contrários.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que os marxistas não sugerem que o Estado possa ser abolido imediatamente (essa é a visão anarquista), mas só com a realização de certas pré-condições. Essas pré-condições foram tratadas anteriormente neste caderno: a vitória internacional da revolução socialista e a derrota total da burguesia contra-revolucionária; a abolição das raízes de toda a exploração e divisão de classe; a conquista da abundância material na qual os bens sejam distribuídos de acordo com as necessidades.
Nessas circunstâncias o Estado terá perdido as suas funções essenciais. Não haverá classe opressora para defender nem classe oprimida para controlar e suprimir. Com o socialismo em escala mundial tampouco haverá interesses nacionais (ou imperialistas) para impor ou interesses estrangeiros para combater.
E quanto aos crimes e a administração da economia?, perguntará o cético.
Em uma sociedade socialista plena a criminalidade, para todos os intentos e propósitos, desaparecerá, não porque no socialismo todos se tornarão «bons» ou moralmente perfeitos, mas porque os motivos e as oportunidades para o crime serão removidos.
Ilustremos o caso geral com o exemplo de uma das formas de crime mais comum, o roubo de carros. Ou cada indivíduo terá à sua disposição um meio de transporte adequado e igual para todos, ou o transporte público será colocado num nível em que o transporte individual seja desnecessário. Em ambos os casos o mercado para carros roubados e o motivo para roubá-los terão desaparecido, e o que se aplica para os carros se aplica a todos os demais bens.
Isso deixa ainda em aberto a questão dos crimes contra a pessoa – assaltos, assassinatos, crimes sexuais, etc. Já no capitalismo, nos países de economia avançada onde as desigualdades sociais e a pobreza são menos gritantes, esses crimes constituem uma proporção menor com relação ao quadro geral de crimes, e numa sociedade socialista não competitiva, que trate os cidadãos de modo igualitário, esses crimes se reduzirão drasticamente. Os comportamentos anti-sociais que permanecerem serão melhor tratados pelas organizações coletivas das comunidades locais. Não haverá necessidade do Estado.
Quanto à administração da economia deve ser dito que, em última análise, é a economia que determina as ações do Estado, e não o contrário. O grande papel do Estado no controle da economia (a despeito dos anti-estatistas neoliberais) se deve à tentativa (fracassada) de mitigar as contradições do capitalismo e de organizar as forças dos capitalismos nacionais na sua concorrência com os demais.
Com o socialismo ambas as coisas não serão mais necessárias.
Assim na sociedde socialista do futuro o Estado irá realmente perecer e isso marcará o desaparecimento do último vestígio da terrível herança da sociedade de classes e a conclusão final da passagem da humanidade do reino da necessidadade ao reino da liberdade – que é, afinal, a essência do socialismo.
Sugestões de leitura
Marx tratou mais detalhadamente das características essenciais do socialismo em sua Crítica do Programa de Gotha. O contraste entre suas idéias e as dos socialistas utópicos foi exposto por Engels em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico. Lenin não só defendeu as idéias de Marx e de Engels como as enriqueceu à luz da experiência dos revolucionários russos. O seu livro O Estado e a Revolução é um ponto de partida essencial para compreender a natureza do Estado pós- revolucionário.
Sobre a experiência do poder dos trabalhadores vale a pena ler Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo de John Reed. Também essencial é a magnífica História da Revolução Russa de Trotsky. A experiência da dualidade de poderes no processo revolucionário chileno é abordada de modo sucinto, porém detalhado, por Mike Gonzales. As melhores explanações de como o socialismo tornará possível a libertação das mulheres encontra-se em Sex, Class and Socialism [Sexo, Classe e Socialismo] de Lindsey German, Women and the struggle for socialism [As mulheres e a Luta pelo Socialismo] de Norah Carlin e Women’s liberation and class struggle [A Libertação das Mulheres e a Luta de Classes] de Chris Harman. Sobre a luta pela libertação gay ver Gay Liberation and the struggle for socialism [A Libertação Gay e a Luta pelo Socialismo] de Noel Hallifax.
Para um relato mais detalhado do racismo como um produto do capitalismo ver Racism and Anti-Racism [Racismo e Anti-Racismo] De Peter Alexander e Race and Class [ Raça e Classe ] de Alex Callinicos. E para uma compreensão de como a nossa visão de uma sociedade melhor se vincula à luta cotidiana contra o sistema capitalista, The Revolutionary Road to Socialism [OCaminho Revolucionário para o Socialismo] de Alex Callinicos é uma leitura essencial.
Embora a ascenção do stalinismo sobre os escombros da revolução russa escape ao tema deste caderno, uma compreensão desse fato é necessária para que se veja com clareza as diferenças qualitativas e essenciais entre as sociedades «socialistas» que caíram recentemente (e as que ainda existem) e a sociedade revolucionária russa antes do stalinismo. A obra mais detalhada sobre assunto é O Capitalismo de Estado na Rússia de Tony Cliff, cuja elaboração data de 1947, quando qualquer posição que não considerasse a Rússia stalinista como socialista ou um Estado operário (degenerado ou não) era considerado pelos socialistas de todos os matizes um lunático ou contra-revolucionário.
E, por fim, indicaríamos a leitura de A Vingança da História, obra fundamental de Alex Callinicos, na qual o autor não só trata da ascenção e queda do stalinismo, como realiza uma crítica implacável do capitalismo contemporâneo e demonstra como o autêntico socialismo revolucionário não só permanece sendo a única alternativa à barbárie capitalista como é uma possibilidade cada vez mais concreta para a humanidade. Este livro, um verdadeiro marco da recente literatura socialista, é uma leitura, sem dúvida alguma, indispensável para todos os socialistas.